quarta-feira, 30 de abril de 2014

Correção sobre a cronologia neobabilônica

Prezados irmãos,

O lema da família Watterson, desde o século XIII, é “Veritas vincit omnia” (“A verdade vence sempre”). O que importa mesmo, no final das contas, não é o que eu penso ou prefiro, mas sim a verdade. Sendo assim, devemos estar sempre prontos a rever nossas convicções, e corrigi-las sempre que necessário.

Neste post, desejo reconhecer que eu estava errado em relação àquilo que tenho afirmado (por escrito e do púlpito) sobre a cronologia do período neobabilônico. É um detalhe que só vai interessar um grupo muito pequeno da audiência (muito pequena) deste blog; mas um detalhe que, para quem se interessa pelo assunto, é importante. Entendendo que eu posso ter influenciado alguém a crer em algo que considero errado, é minha responsabilidade tentar corrigir este erro.

Primeiro, apresento a correção, resumidamente; depois, para quem estiver interessado, uma explicação um pouco mais detalhada.

Correção

Até poucos dias atrás eu aceitava a cronologia do período neobabilônico exposta por Martin Anstey (The Romance of Bible Chronology. London, Marshal Brothers, 1913). Duas datas-chave desta cronologia são:
  • Destruição de Jerusalém — 504 a.C.
  • Primeiro ano de Ciro — 454 a.C.
Descobertas arqueológicas no último século, porém, provaram que Anstey estava errado, e que a cronologia recebida (deste período) estava certa. Sendo assim, tenho que reconhecer que as datas citadas acima deveriam ser modificadas da seguinte forma:
  • Destruição de Jerusalém — 586 a.C.
  • Primeiro ano de Ciro — 539 a.C.
Conforme o tempo permitir, pretendo examinar este blog e corrigir qualquer data relacionada a este período, baseado nestes dados.

Explicação

Por que eu seguia Anstey? E por que mudei de opinião?

Os argumentos apresentados por Anstey eram muito coerentes diante dos fatos conhecidos na época em que o livro dele foi escrito (1913). Naquela época, a cronologia secular do período em questão era baseada nos escritos de Ptolemy (ou Ptolomeu), principalmente numa lista de reis da Babilônia e Persa (o Cânon Real) preparada muitos séculos depois dos fatos. Como os dados apresentados por Ptolemy não combinavam com a forma como Anstey interpretava algumas profecias do Velho Testamento (principalmente a profecia das setenta semanas de Daniel cap. 9), Anstey afirmou (e eu repeti) que a palavra do profeta inspirado era mais confiável do que a palavra dum astrônomo egípcio. Não haviam outras fontes daquele período que poderiam confirmar os dados de Ptolemy, ele não era contemporâneo dos reis que descrevia, então não parecia sábio seguir cegamente um aparato cronológico escrito por um astrônomo que viveu tanto tempo depois dos fatos em questão.

Hoje em dia, porém, a realidade é outra. Milhares de documentos da Babilônia antiga foram descobertos no século XIX e XX, e conforme vão sendo traduzidos e publicados (um processo lento) vai se percebendo que os dados cronológicos apresentados por Ptolemy são altamente confiáveis. Eis alguns exemplos:
  • Há um “diário astronômico” conhecido como VAT 4956 que descreve, em diversas ocasiões diferentes, a posição da Lua e dos cinco planetas conhecidos naquela época. Cerca de trinta destas descrições estão bem preservadas, e são datadas no diário (é dada a hora da observação, o dia, o mês, e o ano: todas as observações são do início do 37º ano ao início do 38º ano de Nabucodonosor). Com os conhecimentos astronômicos que temos hoje em dia, a posição da Lua e dos planetas em qualquer data pode ser facilmente calculada. Astrônomos afirmam que, contando para trás a partir dos dias atuais, as posições relativas ocupadas pela Lua e pelos planetas conforme descritos no diário aconteceram no ano de 568/567 a.C. (da primavera de 568 à primavera de 567). Assim fica estabelecido, pelo curso dos corpos celestes (e não simplesmente por tabelas cronológicas de antigos), que o 37º ano de Nabucodonosor começou em 568 a.C.
  • Além disto, milhares de contratos comerciais daquela época foram descobertos nos últimos anos (da firma conhecida como “Egibi e filhos”, por exemplo). Estes contratos são todos datados, trazendo a inscrição: “ano XX do rei XXXXX”. Nestes milhares de contratos descobertos existe menção feita a todos os anos de todos os reis mencionados na lista dos reis de Ptolemy (por exemplo, se Ptolemy afirma que um determinado rei reinou durante vinte anos, existem contratos datados do 1º ano, outros do 2º ano, e assim sucessivamente, até ao 20º ano deste rei). Todos estes milhares de contratos concordam perfeitamente com a lista de Ptolemy.
Diante de tais fatos, não é coerente afirmar mais que a cronologia recebida do período neobabilônico esta errada; é a interpretação de Anstey (e, por consequência, a minha), que estava errada.

Gostaria de ressaltar que trata-se de rejeitar uma interpretação humana, não as palavras inspiradas de Deus. Nunca terei vergonha de discordar das interpretações dos homens (não importa quão sábios sejam estes homens) quando estas interpretações discordarem da Palavra de Deus. Um bom exemplo disto é a teoria da evolução; os sábios deste mundo interpretam o registro dos fósseis como sendo prova de que tudo veio do nada, enquanto que a Bíblia afirma que Deus criou tudo. Acredito no que Deus diz na Sua Palavra, e prefiro ver os fósseis como o registro de transformações cataclísmicas controladas por Deus.

Como escrevi acima, nunca terei vergonha de discordar das interpretações dos homens quando eles discordarem da Palavra de Deus, mas não posso defender uma interpretação minha quando ela contradiz fatos históricos que não podem ser negados.

Fica o registro, portanto, da correção, acompanhada da oração para que Deus nos ajuda mais e mais a compreender a Sua Palavra e a Sua vontade.

© W. J. Watterson

quarta-feira, 16 de abril de 2014

Nove figuras das igrejas locais

O Novo Testamento usa diversas figuras diferentes para ilustrar o que é, e como deve funcionar, uma igreja local. Uma forma de organizar estas figuras, facilitando a compreensão das diferenças entre elas, é lembrar de como o VT enfatizou a ideia de Deus habitando com o Seu povo no Tabernáculo e no Templo, e pensar na igreja local principalmente em termos de uma habitação divina hoje.

terça-feira, 8 de abril de 2014

Figuras de linguagem na Bíblia (introdução)

Introdução

Creio que a Bíblia, na sua totalidade, é a Palavra inspirada de Deus; “… homens santos de Deus falaram inspirados pelo Espírito Santo” (II Pe 1:21). Creio que as verdades contidas neste livro são de origem divina, mas também creio que as palavras e expressões usadas para transmitir estas verdades foram igualmente escolhidas por Deus, uma por uma. Não podemos valorizar a mensagem enquanto desprezamos o meio que Deus usou para transmitir esta mensagem.

Quando lemos a Bíblia prestando atenção não só nas verdades que ela ensina, mas também na sua gramática, percebemos que o Espírito Santo fez uso frequente e repetido de figuras de linguagem em todos os livros da Bíblia. Por que Ele o fez? O que podemos aprender com isto? Sugerir respostas a estas perguntas é o objetivo deste estudo.

Comecemos, porém, definindo a expressão “figura de linguagem”.

Definindo o termo

Para que possamos nos comunicar de forma eficaz é necessário seguir certas leis e regras — as palavras que usamos precisam ter um significado estabelecido, e a forma como unimos estas palavras para formar frases precisa também seguir uma estrutura reconhecida. Raramente paramos para pensar nisto ao falar ou escrever, mas sabemos que precisa ser assim. Se cada um usasse palavras com o significado que quisesse, e se as palavras pudessem ser misturadas numa frase sem qualquer preocupação com sua ordem e com a relação entre elas, seria um verdadeiro caos — nossa comunicação traria confusão ao invés de compreensão! Para evitar este caos existem as regras de linguagem, e toda comunicação coerente e compreensível segue estas regras (conscientemente ou não).

O estudo e o tratado destas regras é responsabilidade da gramática; porém a própria gramática conhece, e aceita, o desvio consciente destas regras de linguagem em determinadas circunstâncias, com o objetivo de chamar atenção ao que está sendo dito. Este desvio da norma padrão é o que chamamos de “figura de linguagem” (“figura” no sentido de “forma”, não no sentido de “ilustração”). É importante enfatizar que “figura de linguagem” não é simplesmente uma ilustração, algo inferior à realidade, mas sim uma forma diferente de escrever (que pode até ser uma forma figurada, mas não necessariamente) que realça a realidade; ou o ato de desviar-se da norma padrão desejando alcançar uma maior expressividade (“Forma de expressão que foge da norma rigorosa, apresentando alterações fonéticas, morfológicas ou sintáticas … que empresta ao pensamento mais energia, mais vivacidade, e/ou confere à frase mais beleza e graça”, Aurélio).

Pelas definições formais acima, percebemos que as figuras de linguagem servem para chamar atenção ao que está sendo transmitido. Bullinger (veja bibliografia abaixo) usa uma ilustração muito interessante para realçar a importância das figuras de linguagem. Numa viagem longa de trem, ninguém presta muita atenção enquanto tudo flui naturalmente; mas assim que a velocidade do trem diminui, ou algo inesperado acontece, todo mundo está alerta. Assim com um texto, diz Bullinger; enquanto tudo segue as leis normais que regem a gramática, seguimos nossa leitura tranquilos, sem preocupações ou sobressaltos. Mas quando notamos um desvio das leis conhecidas; quando algo é apresentado de uma forma que não é normal, somos levados a parar e perguntar: “Por que este desvio? Qual a intenção do autor ao empregar esta figura aqui?”

É importante repetir que as figuras de linguagem pertencem também ao campo da gramática, e portanto estão sujeitas a leis e regras como qualquer outra parte de uma língua. Não são uma espécie de Faroeste gramatical, onde não há lei e tudo vale. Ninguém pode escrever algo que foge às leis da gramática e simplesmente dizer: “É figura de linguagem!” Não podemos confundir “vícios de linguagem” (desvios defeituosos da norma padrão, que só confundem) com “figura de linguagem” (um desvio consciente da norma padrão, que realça).

Resumindo: figuras de linguagem são desvios conscientes da norma padrão que tem por finalidade realçar a beleza ou expressividade de um texto, e que também seguem as regras de linguagem.

Defendendo o tema

Nosso objetivo neste estudo, porém, não é estudar gramática, mas sim apreciar um pouco mais das belezas e perfeições da Bíblia. Tendo feito este pequeno desvio pelos campos da gramática e olhado rapidamente para a definição de “figura de linguagem”, precisamos ocupar pelo menos um pouco de espaço para defender este estudo do uso de figuras de linguagem na Bíblia, pois alguns afirmam que tal estudo, além de desnecessário, é desprezível. Desnecessário, dizem, porque não acrescenta nada ao conhecimento que temos de Deus; desprezível, porque aumenta muito a opinião que temos de nós mesmos. Alguns descreveriam esta ocupação com as palavras dirigidas aos ascéticos: “As quais têm, na verdade, alguma aparência de sabedoria … mas não são de valor algum senão para a satisfação da carne” (Cl 2:23).

Em primeiro lugar, pensemos na necessidade deste estudo. Para conhecer a Bíblia é necessário que eu saiba a diferença entre metonímia e sinédoque? Se eu me tornar um doutor em retórica e souber definir e distinguir todas as figuras de linguagem, terei um conhecimento mais elevado da vontade de Deus para a minha vida?

A resposta a estas perguntas é um sonoro “Não!” A Bíblia não foi escrita para os eruditos e retóricos, mas para “os pequeninos” (veja Mt 11:25). A mensagem da Bíblia não está em código, necessitando de sabedoria e inteligência humana para decifrá-la. Pelo contrário, a própria Bíblia afirma que sua mensagem é conhecida pelo Espírito Santo, e não pela inteligência humana (I Co 3:11-16). O caminho principal para compreender a mensagem das Escrituras não é estudar gramática e retórica, mas sim permitir que o Espírito Santo nos revele a Sua própria Palavra. “O segredo do Senhor é com aqueles que O temem” (Sl 25:14), diz o Salmista, não com aqueles que são mestres em gramática! O que Deus quer transmitir na Sua Palavra é de fácil compreensão, desde que haja no leitor um espírito submisso e obediente.

"Ora, então por que perder tempo com este assunto?" pergunta alguém. Como resposta, permita-me apresentar o assunto de outro ponto de vista. Deus usou figuras de linguagem na Sua Palavra? A resposta é muito clara: “Sim — e milhares delas!” Diante deste fato, não devemos perguntar: “Por que preciso prestar atenção nestas figuras?”, mas sim: “Por que irei negligenciar estas figuras?” Se Deus, na Sua infinita sabedoria, achou por bem usar figuras de linguagem em todos os livros das Escrituras, quem sou eu para dizer que este detalhe da Bíblia pode ser desprezado? Como é importante estudar cada palavra, cada detalhe das Sagradas Escrituras, reconhecendo que tudo é inspirado por Deus. Como disse Jeremias: “Achando-se as Tuas palavras, logo as comi, e a Tua Palavra foi para mim o gozo e a alegria do meu coração” (Jr 15:16). O caminho para apreciar a Bíblia como um todo (“a Tua Palavra”) é buscar, achar e digerir cada pequena parte que compõe este Livro (“as Tuas palavras”).

Precisamos encarar o fato de que Deus apresenta Suas verdades, que são sublimes na sua simplicidade, numa forma extremamente atraente e bela. Todas as páginas da Bíblia registram diversas figuras de linguagem, e o estudo deste assunto certamente é importante e necessário. Não porque vai nos revelar alguma doutrina nova, ou algum mistério que os “indoutos” não conseguem compreender — mas porque vai nos levar a apreciar melhor a perfeição deste livro.

Há também outro detalhe; precisamos lembrar que a Bíblia é o único texto perfeito na face da Terra! Qualquer outra obra literária, por mais que tenha alcançado status de “obra-prima”, por mais que seu autor seja reconhecido como um gênio literário, será sempre uma obra produzida por um homem de conhecimento e capacidades limitadas. Somente a Bíblia foi escrita por um Autor onisciente e onipotente. É verdade que o estilo que predomina na Bíblia é a simplicidade, e há obras humanas que são mais rebuscadas e gramaticalmente enfeitadas do que a Bíblia (como um todo) — mas isto é porque Deus queria instruir, e não impressionar; Ele escrevia para todos nós, e não somente para um pequeno grupo de intelectuais e eruditos. O que estou argumentando não é que a Bíblia é a obra literária mais rebuscada que existe, mas sim que é a única em toda a face da Terra onde cada palavra (literalmente!) tem um significado e importância; é a única obra perfeita.

Esta perfeição da Bíblia coloca mais importância sobre as figuras de linguagem que ela usa. Como disse Bullinger:
O homem pode usar figuras em ignorância, sem nenhuma finalidade específica. Mas quando o Espírito Santo usa palavras humanas e aplica uma figura (ou forma peculiar), é com uma finalidade especial, e esta finalidade deve ser observada e tratada com a devida importância.
Em outras palavras, autores humanos podem usar uma figura de linguagem sem perceber que usaram, ou somente porque ouviram outro falar desta forma. Podem, também, usar uma figura que não seria a mais indicada naquele contexto. Mas quando o Espírito Santo usa uma figura de linguagem, podemos ter certeza absoluta que Ele o fez com perfeição, e que há tesouros de conhecimento para serem revelados ali. Nunca será perda de tempo prestar atenção aos pequenos detalhes com os quais o Espírito Santo ornamentou a Bíblia.

Distinguindo os tipos

As figuras de linguagem são tão numerosas quanto antigas. Os gregos antigos deram nome a mais de duzentas destas figuras, mas o verdadeiro desafio está em classificá-las de uma forma útil. Uma pesquisa sobre este assunto mostrará diversas formas diferentes de se dividir e classificar as figuras de linguagem, cada uma tendo suas vantagens e desvantagens.

Devido às minhas limitações neste assunto, não vou me atrever a resolver a questão. Mas como precisamos de algum tipo de classificação para não nos perdermos em meio a tantas figuras, vou seguir o esquema proposto por Bullinger, que divide as figuras de linguagem em três grupos:

  1. Figuras que são caracterizadas por omissão (de palavras ou de significado — figuras elípticas);
  2. Figuras que são caracterizadas por acréscimo (pela repetição de palavras ou de significados — figuras pleonásticas);
  3. Figuras que são caracterizadas por alteração (no uso, na ordem, ou na aplicação de palavras).

Na sua monumental obra, Bullinger usou mais de mil páginas para nomear, classificar, descrever e ilustrar (com passagens bíblicas) duzentas e dezessete figuras de linguagem encontradas na Bíblia. Minha intenção neste estudo é bem mais limitada: pretendo somente destacar algumas destas figuras, como uma pequena introdução ao assunto. Há muito ainda que preciso aprender, e há muito ainda para ser explorado nas Escrituras. Mas se esta introdução servir para despertar em alguém o interesse para aprofundar-se neste estudo, e se criar em todos nós o desejo de prestarmos mais atenção aos pequenos detalhes da Bíblia, será motivo de gratidão a Deus.

Em próximos artigos, se Deus permitir, destacarei algumas das figuras de linguagem mais comuns na Bíblia.

Leia o próximo artigo nesta série: Assíndeto e Polissíndeto.

Bibliografia resumida:
BULLINGER, E. W. Figures of Speech used in the Bible Explained and Illustrated. Michigan, Baker Book House, 23rd printing, 2003.


© W. J. Watterson